quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora
De desalento, de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue, volúpia ardente
Tristeza esparsa, remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

-Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira

Vivo mais quando rio
o rio caudaloso desse riso
que me leva
por lugares onde nunca estive
pois é sonho o riso
e o riso alucinação.

O abraço escarlate
dos teus lábios
deixa manchas de baton
e cicatrizes no coração
assim de saudade eu morro
morre úmida a tarde lenta
em lentes embaçadas
vejo o Sol a se por
ponho a mão sobre a tua
imaginária mão
e tenho a súbita impressão
de que és minha
mas logo vejo que não
tudo é sonho e fantasia
só me resta então que eu ria
ou que chore em silêncio
meu sofrido coração.


Benno Assmann

sábado, 14 de janeiro de 2012

DE VEZ - PRA SEMPRE


Despeço-me mais uma vez.
Fecho às trancas da porta
que deixei ontem entreaberta.
Lanço as chaves às labaredas
do incêndio em que te incendeio.

Despeço-me mais uma vez.
Não olho para trás.
Não tenho nos ombros o pesar.
Já não sei os contornos do teu rosto,
já não sei o sabor do teu gosto,
não sei o teu nome.

Quem é você?

Despeço-me mais uma vez.
Despojo-me do ontem,
rasgo o calendário do amanhã e
deixo cair à ampulheta que faz
do tempo seu prisioneiro.
Liberto-o da sua condição temporal.
O tempo agora não tem mais fim
é temporalmente intemporal.

Despeço-me mais uma vez.
Fecho às trancas da porta
que deixei ontem entreaberta.
Do outro lado da porta
daquele em que eu não estou,
deixo caída no chão
a ampulheta do tempo.
Essa que agora te ofereço.

Erga o cálice do tempo
sorve-o lentamente,
deixa que as gotas temporais
te caiam na ponta da língua.
Sinta a volúpia dos segundos.
És agora Dono do Tempo.
Dono da solidão intemporal
com que o Tempo te envenena o sangue.

Despeço-me mais uma vez,
De vez – prá sempre...


Maria Flor

AUTO-RETRATO


Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.


Manuel Bandeira

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O PAPEL SORRI


Silenciosamente,
de forma quase inaudível
o lápis sussurra palavras ao papel.
e o papel sorri.

Letra após letra,
o lápis acaricia
a alva folha,
que de felicidade sorri.

Do lápis,
as ideias brotam
sobre o papel
e ambos fazem nascer
a poesia.

Lápis e papel
trocam afagos com letras.
dão abraços com palavras.
são sentimentos
através das ideias
e em conjunto constroem o poema
até à palavra FIM.

...o lápis cansado
deita-se em merecido descanso...
...enquanto, de alma preenchida
o papel sorri.


Eduardo Roseira

Respiro...

Suspiro...
Transpiro...
Penso e repenso...
Momento tenso...
Anseio...
Devaneio...
Bloqueio...
Insisto...
Quase desisto...
Persisto...
Conquisto...
Perco...
Reencontro...
Canso...
Descanso...
Avanço...
Retrocedo...
Tenho medo...
Recomeço...
Meço...
Me despeço...
Sofro...
Envelheço...
Desapareço...
Retorno ao começo!


Sônia Silvino

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

BEM PROTEGIDO

Foi naquele dia que choveu muito
Uma chuva de deixar até pato gripado
Abri meu guarda-chuva, o que mais?
E choveram estrelas bem na minha cabeça
Algumas acertaram a testa
Outras, os olhos.
E minhas idéias ficaram iluminadas.
O caminho também.
Foi o que me salvou de pegar um resfriado.
Mas o melhor de tudo
Veio no final.
Escapuliu de dentro do guarda-chuva
Além das estrelas, um farol!
Também pudera! Como não desconfiei?
Aquilo nunca fora guarda-chuva
Mas, sim, um guarda-sol.


Pedro Antônio de Oliveira

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

RITO DE PASSAGEM


E assim tem sido
O que talvez
Jamais devesse ter acontecido
Se é para ser ranço
Com gosto de pão amanhecido,
Sensato então, seria
Não haver o amor comparecido

Mas esse é um jogo
Em que não cabem apostas
Sem ganhador ou perdedor
Apenas vidas expostas

Não há como ser diferente
Pois esse é um prato
Que deve-se comer quente
E queima a língua dos desavisados
Ingênuos, inocentes, apaixonados

Dá que todos querem provar
E, entre mortos e feridos
Todos os sobreviventes
Fariam tudo de novo
Pois ninguém chega ao céu
Sem antes haver morrido.


Célia Sena