terça-feira, 22 de janeiro de 2013

PARAISO


Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso. 
 
 
David Mourão-Ferreira

SONHO


Me sinto,
um barco perdido
a procura do cais
a cada nova aurora
ao sentir
o sopro do vento,
ali estou, envolta em
um cobertor de sonhos...
querendo ver
o mundo suspenso,
nos olhos dos meus desejos...
e quem sabe ao anoitecer
o cobertor seja de beijos.


Claudia Gonçalves

SUBVERSIVA


A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.


Ferreira Gullar

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

NOSSO PRESENTE



Não te trouxe..
nenhum doce,
nem presente,
nenhum enfeite,
nenhuma lembrança que fosse.

Quero ter as mãos vazias
para o abraço
um grande abraço
maior que a noite,
melhor que o dia.


Alice Ruiz

A MEDIA LUZ



Sempre reneguei o tango
e os entusiastas de Gardel,
(longe de mim a passional postura
eivada por desolação e dor),
o amor sempre em mim a eterna nuvem
e um campo de mais alvos lírios
onde jamais choveu.
Cerrei as tendas, afastei o bruxo,
mas na contrapartida
adiei o fruto, me ceguei à cor.


Violinos eternos , bandoneóns ,
toquem-me hoje um tango crepuscular
e tardio, toquem, que desaprendi
o me bastar e o meu cismar sozinho,
à meia-luz meu coração é um bordel,
são girassóis que dançam -
todo chama, e torvelinho.


Fernando Campanella

domingo, 13 de janeiro de 2013

PARA SEMPRE


Houve tempo em que me chocava
o sussurro dos medíocres.
Mas depois reparei que a mediocridade
afinal governa o mundo.

Foi então que passei a ignorar
a lengalenga da inveja,
o riso alarve do despeito.

E fui feliz para sempre,
como era inevitável.


Torquato da Luz

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?


Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.


Oswald de Andrade

sábado, 12 de janeiro de 2013

MULHER ABSTRATA


Sou quem sou, simplesmente mulher, não fujo, nem nego,
Corro risco, atropelo perigo, avanço sinal, ignoro avisos.
Procuro viver, sem medo, sem dor, com calor, aconchego,
Supro carências, rego desejos, desabrocho em risos...

Matéria cobiçada... na tez macia, no calor ardente.
Alma pura, envolta em completa fissura. Sem frescuras!
Encontro prazer na forma completa, repleta, latente.
Meretriz sem pudor,mulher no ponto, uva madura!

Sou quadro abstrato, me entrego no ato à paixão que aflora.
Sou enigma permanente, sem ponto final, sem continências,
Sou mulher tão somente, vivendo o momento, sorvendo as horas.

Sou pétala recolhida, sem forma, sem cor, completa em essência.
Exalo a esperança, transpiro vontades. Não me tenhas senhora.
Sou mulher insolúvel, nada volúvel. Vivo a vida em reticências...


Ângela Bretas