terça-feira, 31 de maio de 2011

POÇO DOS LUARES


Cantar a lua nos teus olhos
é duplamente arte
que já é uma espécie de poço
dos reflexos profundos
de outros reflexos

Loucura é perder-se
no real e na arte
é ver-se emaranhado
bem no fundo

Mas se me livrar
e teus olhos fitar,
pulo de novo
dum beijo ao
fundo do poço.


Alberto Ritter Tusi

domingo, 29 de maio de 2011

SE ASSIM EU FOSSE


Ainda que eu tivesse a pureza dos lírios
fosse transparente como água cristalina
e meu vestido fosse branco
como as neves do Machu Pichu,
se eu cantasse
e encantasse as pessoas com meu canto,
se eu possuísse toda beleza
e se toda riqueza da terra
fosse minha,
se como uma poderosa rainha
eu desse do meu tesouro aos pobres,
se todo dia, sinceramente, eu rezasse
e aos meus mais belos sonhos
eu renunciasse,
se tivesse a virtude como companheira
e a verdade como conselheira,
mas se eu não tivesse amor
e a ninguém amasse
nada disto tudo me aproveitaria
e eu passaria pela vida
como se não passasse.


Zoraida H. Guimarães

SOUVENIR


É tão simples o que espero,
E tão raro o que me falta,
Tão delicado, sutil e singelo
Como o assovio de uma flauta.

A delicadeza é só o que salva.
E a solidão é só o que resta:
É o souvenir de uma valsa
Que dancei nalguma festa.

Mas meu par foi-se embora
E levou consigo a orquestra
Deixou somente esta senhora...

Que espera, quem sabe um dia,
Receber aquele gesto que a faria
Dançar sua alegria como outrora...


Rachel Rabello

quinta-feira, 26 de maio de 2011

CHOVE....


Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


José Gomes Ferreira

DIZ-ME


Desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exatas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me

o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
- e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste.


Alice Vieira

BOBAGENS


Discordo eu, de que ser bobo
Seja um ato de criatividade
Os bobos, são apenas bobos.
E para isso, não há rivalidade.

São eles, os bobos,
Os mais puros de coração.
Entregam-se de corpo e alma
Ao que querem e ao que são.

Nisso reside uma verdade
Que não suporta imitação.
Aos que se passam por bobos
Sobram rebarbas de razão.

Coisa que os bobos, de fato,
Carregam pouco, um só grão.
Pois o que move seus atos
São muitas sobras de emoção

E haja bobices
Pra sustentar tanta sandice,
Simpatia, maluquice,
No ato de ser feliz.


Célia Sena

EPÍGRAFE


Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria.


Manuel Bandeira

segunda-feira, 23 de maio de 2011

POEMA DA AMANTE


Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.


Adalgisa Nery

Disse Inês que me queria
No tempo que me enganava;
E eu queria, ela zombava.

Deu-me mostras e sinais
Que me amava de verdade,
Cativou minha vontade
Para assim querer-lhe mais;
Cuidei que eram naturais
Os extremos que mostrava,
E eu queria, ela zombava.

Era de mim tão contente
Que assim mesmo tinha inveja,
Que o que muito se deseja
Logo se crê facilmente;
Logo ela era tão diferente
Que em tudo o que me tratava
Eu queria, ela zombava.

Foi-me assim, zomba zombando,
Vencendo por graça e riso;
Sem nunca me amar de siso,
O siso me foi tirando;
Fiquei doido, como quando
Pelo amor, que me mostrava,
Eu queria, ela zombava.

Diziam-me os guardadores:
— Olha ora por ti, Joane,
Deixa Inês e não te engane,
Que ela tem outros amores. —
Cuidavam que eram melhores
Os que comigo tratava:
E eu queria, ela zombava.


Francisco Rodrigues Lôbo

sábado, 21 de maio de 2011

O QUE HÁ


O que há em mim é sobretudo cansaço –

Não disto nem daquilo,
Nem se quer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo.
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas –
Essas e o que falta nelas eternamente – :
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvidas quem ame o infinito,
Há sem dúvidas quem deseje o impossível,
Há sem dúvidas quem não queira nada –
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Álvaro de Campos

TESTAMENTO DO POETA


Todo esse vosso esforço é vão, amigos:

Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais, já desisti de quaisquer portos;
Não peço a vossa esmola de mendigos.

O mesmo vos direi, sonhos antigos
De amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
Que fostes o melhor dos meus pascigos!

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo e todos vejo reduzidos,
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.

Para reaver, porém, todo o Universo,
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!...
Basta-me o gesto de contar um verso.


José Régio

ÚLTIMOS DIAS


Uma casinha branca ao pé da serra.

Onde o poente enegrece mais cedo.
Um sabiá cantando no arvoredo
E um bezerrinho que distante berra.

E quando o dia a pálpebra descerra
E a lua vem bater nos lajedos
Possa eu sentir pelas pontas dos dedos
Toda energia que emana da terra.

Num canto assim quero findar meus dias.
Tirar da terra meu próprio sustento
E meio às manhãs de alvoradas frias

Pelo interior deste simples abrigo.
Bem mais que a neblina que me carrega o vento
Eu tenha quem amo lá dentro comigo.


Jenário de Fátima

sexta-feira, 20 de maio de 2011

NA RUA DA MINHA CASA


Enquanto o Reino Unido se encantava com o casamento de seus príncipes,
No agora deserto de meu pequenino reino,
Formado por paralelepípedos, asfaltos e concretos,
Uma maria-sem-vergonha decidiu nascer dentro do bueiro
(Oásis inóspito de um progresso desenfreado ).

Nasceu cor-de-rosa com pintas brancas.
Lá dentro foi se fazendo feminina;
Vestiu-se como uma promessa atrevida
E rindo foi brincando com o impossível.

De flor assim tão frágil
nunca vi tanta meiguice.
Nunca vi tanta coragem.


Oswaldo Antonio Begiato

quinta-feira, 19 de maio de 2011

NECROLÓGICO DOS DESILUDIDOS DO AMOR


Os desiludidos do amor
Estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
Escreveram cartas explicativas,
Tomaram todas as providências
Para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
Seja no claro céu ou no turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
Dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
E um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
Levar os corpos dos desiludidos
Encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
Sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
Não servirão de lastro financeiro
E cobertos de terra perderão o brilho
Enquanto as amadas dançarão um samba
Bravo, violento, sobre a tumba deles.


Carlos Drummond de Andrade

ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


Cruz e Sousa

O MEU IMPOSSÍVEL


Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...


Florbela Espanca

quarta-feira, 18 de maio de 2011

VERSOS RABISCADOS


Queria ser audaz como o vento.
Audaz, como nunca fui

Adentrar-te pele e pêlos,
E revolvê-los.


Queria ser voraz como um cão.

Voraz, como nunca fui

Abandar-te da água e da alegria

E depressa, sorvê-los


Em contraponto, queria ser delicada.

Delicada e formosa, como nunca fui

Solapar o perfume e a candura da rosa

E ofertá-los a ti, em elegia


Mas, sou pretensa.

E pretensa, persigo a arte de ser poeta

( Poetas adereçam os desígnios da alma

Rabiscam os versos com a ponta dos dedos,

E os apagam com a palma.)


Jeanete Ruaro

domingo, 15 de maio de 2011

POEMA À BOCA FECHADA


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


José Saramago

segunda-feira, 9 de maio de 2011

SONETO PARA GRETA GARBO


Soneto para Greta Garbo

(Em louvor da decadência bem comportada)

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio porque sabe
que o silêncio se oculta e se evapora

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria

Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.


Carlos Pena Filho

QUESTÃO DE PONTUAÇÃO


Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

Viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

O homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.


João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 4 de maio de 2011



Não fosse a vida um fardo,
não fosse a dor um caldo amargo,
não fosse o desespero um último trago...

Teu nome foi aprendiz.
Tinhas a alma por um triz,
pedaços que colei,
cascalhos de esmeraldas que juntei.

Vi verdade onde havia vaidade.

Vi a cor verde em sede
brilhando no azul da minha parede.
Vi através do que deixastes entrever...

Olhei com meus olhos sem fel
e vi você, sempre vi mel...

Sempre soube você,
em todos os seus versos,
em todas as promessas.

Perverso, complexo,
adverso, convexo,
como um canto de cor
ecoado nesse sem nexo.

Como o suspiro do fim do sexo.

Ah! Poeta...

A mágoa é funda.
A dor é crua e surda.

E não me chames de desembestada.

Na verdade, se não for para dizer sim,
não diga nada.

Deixa que me cure, quieta, calada.
Deixa que ardo, sozinha
e por ti e por mim.

Deixa largado...


Matilda Penna

CAIS



Vai ficando deserto o cais antigo.
Partem os barcos, parte a marinhagem,
ora rumando ao sol de novo abrigo,
ora fazendo a derradeira viagem.

Já não se escuta o apitar amigo,
aviso de chegada ou de passagem,
e no abandono o cais guarda consigo
apenas sombras na feral paisagem.

Tudo vai silenciando, e silencia
também o mar, que outrora estremecia
carregando recados de emoção.

Barcos desertos. . . barcos em pedaços. . .
Ausências, e amarguras, e fracassos . . .
Quem não tem cais assim no coração?!


Graciette Salmon

QUERO UM CAVALO DE VÁRIAS CORES



Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?


Reinaldo Ferreira

domingo, 1 de maio de 2011

UM SONHO LÚCIDO



Um sonho lúcido
E sabe o que é pior?
Que amanhã eu ainda vou estar aqui
De todas as vezes em que me matei, nenhuma você me salvou

E tudo se repete
E eu ainda te amarei
(mesmo que em sonhos)

Eu te sinto
Tanto quanto te minto
Porque contigo eu me permito
Estar plenamente em absinto

No mais tudo consiste
Em meros palpites
Mesmo que eu acredite
Que você, só pra mim existe.


Aneshka

GATO...


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.


Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.


És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.



Fernando Pessoa