domingo, 27 de março de 2011

É DURO TER CORAÇÃO MOLE



Por favor

não me aperte tanto assim

tenha cuidado, pega leve

olha onde pisa

isso é meu coração

meu ganha-pão

instrumento de trabalho,

meio de vida, profissão

meu arroz com feijão

meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte

não machuque esse meu coração

preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão

não me aperte

não machuque

tome cuidado

eu vivo disso

poesia, sonhos

e outras canções

sem emoção

morro de fome

sinto muito

mas não há nada

que eu possa fazer

sem coração
.

Alice Ruiz

DESPEDIDA



Por mim, e por vós, e por mais aquilo

que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? – me perguntarão.
– Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.


Cecília Meireles

segunda-feira, 21 de março de 2011

SURFISTA DO MORRO



Descendo do morro, sorriso no rosto

A prancha no braço, a pressa no passo

Queimando descalço no sol carioca

Pisando no asfalto, driblando o cansaço.


Se benze na água e sente seu gosto

Conversa com as ondas e busca um espaço

Sortudo descobre um buraco e se entoca

No tubo recebe de Deus um abraço.


No grito abafado que sai do canudo

Mantendo o equilibrio e pisando tudo

Na prancha barata quebrada no bico

Nascendo e vibrando se sente o mais rico.


Surfista do morro, saindo do mar

Voltando para casa, saindo do lar

Andando nos becos, subindo a escada

De cabelos secos e alma lavada.


Gabriel - O Pensador

COMPASSO DE ESPERA




As folhas caem amareladas e ressequidas
Misturadas ao pó ardido e amargoso.
Um vento gelado com lâminas perfurantes
Prenuncia a chegada da nova estação.

Meu desejo necessita do calor ausente.
Aquecendo-me num amor terno e vigoroso
Alimentado pelo fogo da imaginação.

Fujo à medo do frio que desespera...
Os sentimentos como folhas atrevidas
Trazem o outono ao meu coração
Que destemido, espera.


Helena Frontini

quinta-feira, 17 de março de 2011

SAFENA


Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu
sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.

Agora chega.

Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.


Elisa Lucinda

QUANDO ELA FALA


Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.

Meu coração dolorido
As suas mágoas exala,
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.

Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.

Minha alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.


Machado de Assis

segunda-feira, 14 de março de 2011

SEPARAÇÃO


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.


Affonso Romano de Sant’Anna



OBRA PRIMA


Essa cor que não me define,

É a cor que me pinta
E em sua pele me imprime
Tatuando-a sem que a sinta.

Essa cor de tinta,
Sem nome , sem definição,
Que desenha a pinta
Em forma de coração.

Não deixa que eu minta
Pois desenha em seu corpo
A minha emoção distinta,
Com a cor do navio sem porto.

Quando acordares no campo,
Sentindo sua pele colorida,
Sentirás do meu amor o quanto,
És minha flor, minha cor preferida.

Enquanto escrevo, pinto,
Na tela de minh’alma sua imagem
Em sua imagem, eu sinto,
Que já sou tatuagem.

Nessa colorida imaginação
Criei minha obra de arte,
Tu é obra prima de meu coração,
E eu, de ti já faço parte.


Mando Mago Poeta


quarta-feira, 9 de março de 2011

BARES DA VIDA




Garçom! Por favor...
Dois dedos de prosa
Um trago de cachaça
E um pedaço de atenção

Traga-me um pano
Limpe essa dor
Espalhada no balcão

Garçom! Por favor...
Mais duas cachaças
Uma pra mim
Outra pra minha alucinação

Deixe-me logo a garrafa
Baixe o volume da saudade
Ou ao menos mude de estação

Garçom! Por favor...
Cigarro, isqueiro e cinzeiro
Papel e caneta tinteiro
E uma porção de inspiração

Um envelope sem remetente
Peça água de colônia ao barbeiro
Para disfarçar o cheiro da adjuração

Garçom! Por favor...
Uma canção de Amor
E uma grande porção gelo
Para empanar um coração

Traga minha conta
Um prego de pendurar alma
Um martelo de abstração

Garçom! Por favor...
Se eu não vier resgatá-la
É porque não preciso mais
Venda-a em leilão


AlexSimas

FALANDO DE AMOR


Chega perto
vem sem medo
chega mais meu coração

Vem ouvir este segredo
escondido num choro-canção

Se soubesses como eu gosto do teu cheiro
teu jeito de flor
não negavas um beijinho
a quem anda perdido de amor

Chora flauta
chora pinho
choro eu o teu cantor
chora manso

Quando passas tão bonita nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
e eu esqueço até do futebol

Vem depressa
Vem sem medo
que eu guardei este segredo
escondido num choro canção

lá no fundo do meu coração!


Tom Jobim


terça-feira, 8 de março de 2011

CAPÍTULO DA SOLIDÃO



Minha vida é um livro aberto
num capítulo em branco
e, para ser franco,
não sei o que escrever...

Mas tenho como certo

que assim não pode ficar
a história tem que continuar
aconteça o que acontecer...

Pensei então, e pensando

fiquei pensando em ti
e me lamentando
por não estares aqui...

Olhei o meu livro da vida

analisei-o com calma
nessa página embranquecida
e vi a ausência da alma...

Então, com tinta de saudade

registrei uma inspiração,
escrevi a realidade:
- Capítulo da solidão!


Rui E L Tavares

domingo, 6 de março de 2011

HUMILDADE



Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.

Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade

seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,

minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Cora Coralina



sexta-feira, 4 de março de 2011

O POETA



Já te despedes de mim, Hora.

Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: que fazer da boca, agora?
Que fazer do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
Caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
Fica mais rico e me devora.


Rilke

quinta-feira, 3 de março de 2011

CURRÍCULO



já soquei tijolo já virei concreto

já comi do bom já pastei sem teto

já passei vazio já sonhei repleto

só me falta chorar pra ser completo


já banquei o bobo me pensando esperto
já fechei a porta e ainda restei aberto

já comprei a banca - já fui objeto

só me falta chorar pra ser completo

já plantei a dor achando ser correto
já tive razão mesmo sem estar certo

já me fiz sublime - já fui abjeto


já clamei por voz no pleno deserto

já me atrapalhei com tudo que é afeto

só me falta chorar pra ser completo


Eduardo Tornaghi

terça-feira, 1 de março de 2011



É triste

o olhar

da ausência

posto no rosto

O olho

verte

uma lágrima

e desconfia.

Se um pelo

a pele

não mais

acaricia

(o amor pôs-se

em fuga)

a mente paira...

Já não quer

comandar

mais nada.


Jeanete Ruaro