terça-feira, 29 de junho de 2010

O AMOR DOS OUTROS



O amor dos outros
é indiferente.
Só o da gente
é especial,
fosforescente,
brilha no escuro.

O amor dos outros
é tão pequeno,
nem vale a pena
pichar o muro.

Ninguém entende
o amor alheio;
não é bonito
e não é feio.
O amor dos outros
é tão efêmero!
Estão amando?
Fazendo gênero?

O amor dos outros
é muito pouco:
só o da gente,
direito ou torto,
alegre ou triste,
sereno ou louco,
lascivo ou puro,
céu ou inferno
— só o da gente
será eterno.

Olha pro rosto
do amor alheio:
são só dois olhos,
nariz no meio,
cadê a boca?
Olha pra cara
do amor da gente:
que coisa louca!

Betty Vidigal

terça-feira, 22 de junho de 2010

GARRAS DOS SENTIDOS



Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos,
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.


São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas,
não quero cantar amores.


Paraísos proibidos,
Contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.


São demências dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.


Dá má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.


Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.


Augustina Bessa-Luís

CANTO SOLO



Ando cansado

de ser o único:

…eu, meu mais fraco,

meu mais novo;…

…eu, meu mais forte,

meu mais velho

[vendo o mundo pelo espelho];…

a buscar, somente em mim

cada conselho;

sem a quem correr

para um consolo;

perdido e desafinado

nesses vôos e cantos solos.


Estou cansado

e, de novo,

quero um colo

pra sonhar.


André L. Soares

COM LICENÇA POÉTICA



Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade da alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado

terça-feira, 15 de junho de 2010

OLHOS



Minha morada tem janelas
Por onde entram imagens
Invertidas e pervertidas,
Cujas vidraças e vitrais,
Presos às esquadrias de minhas seguranças,
Ocupam-se em traduzi-las
E transformá-las em imagens doces.

São imagens de minha liberdade

E de minha demência
Que minhas paredes impermeáveis
Impedem-me de tocar
Aprisionando-me em meus tantos temores.

Mas cuido para que minhas janelas,

Seus parapeitos e paralelos,
Estejam sempre perfumados e enfeitados
Com pétalas e parapétalas
De florestas encharcadas de cores.
E que seus vidros e olvidos
Estejam sempre aquecidos
Com luzes encantadas e lustrais
E com uma luz azul sem fim
Capaz de produzir universos
Inventar canções eternas,
E desenhar um céu cheio de horizontes.

Porque é por elas que um dia,

Arrebentando todas minhas resistências,
Fugirei, voando, para bem longe de mim.


Oswaldo Antônio Begiato

SE NÃO FALAS


Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

Tagore


quinta-feira, 10 de junho de 2010

ISENTO



Mira-te pelo calendário das flores

Que são só viço e esquecimento.
Desprende-te dos ofícios do dia,
Apaga os números, os anos e anos,
Releva a data de teu nascimento.
E assim, por tão leve sendo,
Por tão de ti isento,
De uma quase resistência de pluma,
Abraça o momento,
Toma por bagagem os sonhos
E apanha carona no vento.

Fernando Campanella

ESSA MENINA



Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


Mário Quintana

sábado, 5 de junho de 2010

TEATRO AMADOR



Tenho por máscaras

Um fascínio incontrolável.

Será que guardo
no meu mais profundo abismo
um desejo de teatro?

Ou será que a Verdade
amarga a minha imagem crua
e me mete medo?

O que quero eu revelar,
o que quero eu negar,
se a máscara que uso
é cópia fiel de meu rosto roto?

Oswaldo Antônio Begiato

RECEITA DE ARRUMAR GAVETA



Separe coisa por coisa:

de um lado o pólen do passado
as raízes do que foi importante
os retratos os bilhetes
os horários de chegada
de todos os navios-piratas
os sinos que anunciam
que há um amigo na estrada

do outro lado um espaço vazio
para o que vai acontecer
as surpresas do destino
os desatinos do acaso

Roseana Murray

quarta-feira, 2 de junho de 2010




Cala somente e observa.
Mantém-te íntegro lá onde começas!

Domina o corpo - o que exige,
escuta a mente - a que pensa,
sê sobretudo alma - a que sente!

Equilibra-te na tênue linha
entre o ser e o não ser,
sob a áspera pele
onde moram os sonhos.

Lenise Marques

terça-feira, 1 de junho de 2010

POR UM LINDÉSIMO DE SEGUNDO



tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu
tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas


Paulo Leminski